domingo, 18 de dezembro de 2016

Dando número aos bois


O ano começa a acabar e 2016 leva consigo a marca dos dez anos de existência da Pequena Companhia de Teatro. Atravessamos uma década fazendo teatro e vivendo dele, em um mesmo grupo, com os mesmos integrantes, desenvolvendo pesquisa, montando espetáculos, circulando, ministrando oficinas, promovendo festivais, participando de debates, palestras, seminários, fóruns, sem fazer concessões de ordem estética, política, investigativa, financeira ou intelectual. Esse posicionamento nos custou sangue, suor e lágrimas, mas posso assegurar que nada pingou sem a devida dose de satisfação por saber que construíamos uma trajetória regular, honesta, progressiva e permanente.

Primeiro com César Boaes enredando Jorge Choairy no labirinto de “O Acompanhamento”; depois com o fraternal enlace de Lio Ribeiro e Cláudio Marconcine, em “Entre Laços”; em 2010, Jorge e Cláudio se unem num rito patriarcal, em Pai & Filho, para logo depois saírem da órbita com Velhos caem do céu como canivetes, em 2013. Quatro espetáculos em dez anos. Em dois interstícios a Pequena colabora com a Cia. A Máscara de Teatro para as montagens de “Medéia” e “Deus Danado”, em Mossoró, além de coproduzir duas edições do “Auto da Liberdade”. Pinçaria, também, as 4 edições da Semana Imperatrizense de Teatro, e a performance poético-teatral “Literatura Viva”, com mais de 200 intervenções, para as duas primeiras edições da Feira do Livro de São Luís, das quais a Pequena Companhia de Teatro foi responsável pela direção artística. Para dez anos, poderíamos dizer que se trata de uma produção econômica, mas construída na medida dos nossos anseios e das nossas condições.

Uma das principais virtudes foi que essas produções não se bastaram em São Luís. Desde a primeira circulação, com “O Acompanhamento” pelo interior do Maranhão, em 2006, até a derradeira, com “Velhos caem do céu como canivetes” pela Amazônia Legal, viajamos 67 cidades de 25 estados do país. Todos os espetáculos da Pequena Companhia de Teatro cumpriram pelo menos um projeto de circulação. Visitamos 26 cidades do Nordeste, 14 do Sul, 4 do Centro-oeste, 14 do Sudeste e 9 do Norte, ultrapassando as 250 apresentações. Participamos dos principais projetos de circulação nacional – Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, Palco Giratório/SESC, Viagem Teatral/SESI e SESC Amazônia das Artes –, além de ocupar(e)mos os Centros Culturais BNB de Sousa e Fortaleza, através da Seleção de Projetos Culturais BNB. Viajamos de carro, de barco, de van, de avião, de ônibus, de trem, de carroça – isso mesmo que você lê.

Os 4 Prêmios FUNARTE de Teatro Myriam Muniz ganhos pela Pequena Companhia de Teatro, em 2009, 2010, 2012 e 2013, foram nosso esqueleto de sustentação, e a tábua de salvação para inúmeros grupos teatrais do Brasil, que agora padecem com a falta de entusiasmo do MINC em sinalizar uma gestão séria. Tanto os atores Cláudio e Jorge, quanto os espetáculos, direções, produções, cenários e figurinos ganharam o Prêmio SATED/MA de Artes Cênicas - 10 ao todo. Participamos de 62 festivais ou mostras de teatro locais, regionais, nacionais, internacionais e intergalácticas.

Além disso estudamos, enrolamos, aprendemos e ensinamos. Ministramos 5 oficinas – de atuação, de iniciação, de dramaturgia, de leituras dramáticas e de cenografia –  para mais de 50 turmas, em 30 cidades de 18 estados deste brasilzão, e publicamos, lançamos e vendemos/distribuímos 1.000 exemplares de um livro, minha dramaturgia reunida. Parte dessas atividades promovidas pelo Programa BNB de Cultura, outro inestimável investimento cultural que a classe artística perdeu e não se apercebeu.

Adquirimos a sede, que foi nosso grito de independência criativa. Aqui montamos e estreamos o espetáculo “Velhos caem do céu como canivetes”, mantivemos nosso repertório em temporada regular, ofertamos diversas oficinas, debates, visitas guiadas e um seminário com Gilberto Freire de Santana, Dyl Pires e André Lisboa. Ainda abrimos as portas para produções externas, e recebemos os espetáculos “Para uma avenca partindo”, “A escrita do Deus”, “As 3 fiandeiras”, a performance “Ocupa Árvore”, a palestra “Ser indígena hoje em contexto urbano”, a roda de conversa com Gero Camilo, a Mostra SESC Guajajara de Artes, a Conexão Teatro, a Semana do Teatro no Maranhão, o Festival Ponto de Vista/UFMA, A Feira do Livro de São Luís, o lançamento da revista Palavra, os intercâmbios com o Coletivo Alfenim, a Cia. A Máscara, os Clowns de Shakespeare, o Patuanú, o Tibanaré, a Cia. Pão Doce, A Outra Cia. de Teatro (na verdade, esta nos deve a visita, nós é que fomos lá), a oficina literária de Marcelino Freire, e tudo aquilo que por aqui passou e você não viu.

Também aqui, neste blog, a história da Pequena Companhia de Teatro foi sendo construída; foram 525 publicações, 1283 comentários de assíduos ausentes leitores, e milhares de visualizações, em mais de 6 anos de ininterrupta reflexão sobre o teatro e seu entorno, o mundo. Você, confidente leitor, atenta leitora, foram testemunhas das dores e dos sabores dessa jornada hercúlea, a de se fazer teatro no Maranhão e fazê-lo reverberar além das suas fronteiras.   

Para mim, sem sombra de dúvida, foram os melhores dez anos da minha vida. Katia, Jorge e Cláudio, obrigado. No agradecimento aos três sintetizo minha gratidão a todos os atores que ajudaram a consolidar a nossa caminhada, apoiando, assistindo, comemorando, participando, criticando, patrocinando, aplaudindo, conversando, ignorando, refletindo, jantando, ensinando, torcendo, brigando, convivendo, saboreando. Obrigado!

domingo, 4 de dezembro de 2016

Ler sem entender – uma curiosa equação


João Ubaldo Ribeiro, na propaganda de uma entrevista dada a Fernanda Torres que ainda não vi, falava sobre ler sem entender. É o que tenho feito durante mais de quarenta anos: ler sem entender. Vou lendo, deixando que as palavras façam seu genioso trânsito pelo cérebro, esperando que essa experiência repercuta de alguma maneira em tudo o que meu ser procura, sonha, contesta, provoca, pratica. Mas entender, entender mesmo, nunca entendi. Creio que cerca de oitenta por cento de tudo o que li na vida me deixou com aquela incessante sensação do incompreendido; aquela eterna pergunta que por vezes me deixa contrafeito: será que é isso? Agora mesmo, enquanto leio algum clássico que me devo, fico me perguntando: o que está assentado nessas páginas que jamais chegarei a entender?

Enquanto essa sensação perdura, vou me deliciando com o hábito de confrontar as páginas, vou deslizando os olhos sobre as frases e seus mistérios, deixando a leitura fluir como queira, sem constrangimento. Quantas vezes atravessei laudas inteiras esperando que os miolos concluíssem o raciocínio provocado pela escritura,e padeci, em silêncio profundo, com os olhos cravados no ponto final, perante a certeza de não ter entendido nada? De Nietzsche a Derrida, de Borges a Vallejo, de Suassuna a Saussure, de Raymond Williams a William Shakespeare, de Macedonio Fernandez a Roland Barthes, centenas de páginas livres; uma chuva de papel em forma de sentido desafiando minha paciência, e eu, com a persistência que me é peculiar, lendo, sem pressão, sem pretensão, aguardando o destino que o pensamento dará para a sentença; esperando encontrar na cabeça um lugarzinho útil para aquele capítulo inteiro que me pareceu inútil.

Minha irmã lê e entende. Entende com uma precisão assustadora. Uma leitura profunda, que permite a reprodução milimétrica de todo o sentido, por mais complexo que seja. Quando me explica algo que acabou de ler, fico olhado para ela como um jumento olhando para um castelo. Na maioria das vezes não consigo acompanhar plenamente o raciocínio, mas separo um tempinho no meu juízo para ficar apenas contemplando a cena, seus gestos e compassos, admirado com a clareza que ela consegue ter do que acabou de ler, enquanto extraio da explicação algo do que ali estava escrito. Sempre invejei essa inteligência, e encontrei na boa e descompromissada prática de ler sem entender a forma de acompanhar tudo aquilo que eu imaginava existir em cada uma das obras que se me apresentaram no decorrer da vida.

O leitor deve pensar que faço galhofa, mas sou franco. Falando profissionalmente, o que existe em mim de Grotowski, Artaud, Barba, Stanislavisk, Kantor, Chekhov, Brecht, Brook, é o manifesto estado do ler sem entender. Em mim, esses autores são uma massa fértil e confusa de ideias, estudos, postulações, indagações, métodos, tratados e teses impregnadas, assimiladas de maneira particular, pessoal e peculiar, através da passagem das páginas desses livros pelos olhos de alguém que lê, deseja entender, e continua lendo à espera de que o fenômeno aconteça, sem se assombrar com o fracasso. Assim construí meu pensamento por falta de mediação, como outrora comentei aqui.

Hoje, já cambaleando no tempo reservado ao homem para fazer o resumo da sua história, não tenho mais pretensões. Imagino que chegarei ao fim como um ser que leu mais do que devia, menos do que queria, entendeu um pouco do que lia, e se divertiu com o hábito de ler, mesmo sem entender. Por isso continuo. Lendo sem parar para pensar se entendo. Mesmo agora, quando me espera o presente da querida Flávia Teixeira, tentando provocar meu juízo com a Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han. Tomara que eu entenda.