O teatro não precisa de
mediação. Ele é o mediador do humano com o mundo. Ele faz a mediação entre o
espectador e o incompreensível universo que o entorna. É dele a
responsabilidade de traduzir o ininteligível, de apresentar o espanto, de aflorar
o entendimento. Se passarmos a construir cênicas que exijam a mediação de um
programa, de um curador, de um crítico, de um debate, o que sobra para um reles
mortal como eu, um humano que busca a mediação do teatro para tentar entender
um mundo incompreensível? Como sobreviver sem a mediação do teatro para
processar um mundo de radicalismos, fobias, racismos e arbitrariedades? O
teatro precisa preservar seu poder de mediação, conduzir o acordo para a
necessidade da diversidade. O teatro
precisa manter o atilamento que lhe é peculiar na árdua tarefa de desvendar o
humano ser; esse lugar de conflitos, exageros, extremismos, abusos,
intolerância e medo. Colocar o teatro em um lugar de expectativa, em um lugar
de passividade, em um lugar de espera pela mediação para a sua fruição, é
aniquilar sua principal característica, a presencialidade, o tête-à-tête com o
espectador; a tradução eficaz do que o sujeito vê e o que o visto esconde. O
teatro não muda o mundo; muda a leitura de mundo do espectador, e isso não pode
acontecer se a relação entre o teatro e o espectador exige uma mediação.
Digo
isto porque estamos em Alta Floresta, no Mato Grosso, lugar de humanos que vão
ao teatro na busca de entender a humanidade. Durante os debates ao fim das três
apresentações de Velhos caem do céu como canivetes – e nos mais de duzentos
debates que fizemos nos últimos anos –, pude perceber isso com larga clareza.
Os comentários, as reflexões, os apontamentos, tudo o que ouvimos reforça o
poder de mediação que o teatro tem, a valia de ser o instrumento que favorece a
compreensão das faltas, das falhas, das navalhas que cortam um país
desgovernado. Se atravessarmos, obrigatoriamente, um intruso na compreensão do
espectador, ele se sujeitará à opressão do conhecimento como instrumento de
poder, subtraindo sua liberdade de escolhas, percepções, leituras, bricolagens.
Percebam
que meu argumento vai contra a “obrigatoriedade” do mediador; põe o acento nas
obras que exigem uma mediação. Então, por que e para que fazer um teatro que
exija, necessariamente, ser mediado? Por que extrair do teatro seu discurso
direto, que por si só, já é metafórico, poético, complexo? O que ganhamos
complicando radicalmente o diálogo com o espectador? E pergunto isso desde um
lugar de criação, em um grupo que tem por peculiaridade provocar a reflexão do
público através de montagens complexas. Contudo, me preocuparia saber que
nossos espetáculos exigem a explicação, a tradução, a mediação de outro
instrumento que não a própria fruição da apresentação. Penso que esses
instrumentos devem ser disponibilizados, favorecem a interlocução, mas a obra
não pode ser hermética ao ponto desses mecanismos serem indispensáveis para o
acesso, como já acontece em diversas experiências nas artes visuais. O que se
ganha com isso? Sei o que perdemos. Quando vou ver uma peça que obriga uma
mediação, seja ela qual for, me dá preguiça. Me sinto desprestigiado como
espectador. Eu não preciso que ninguém me explique a obra. Eu quero errar à
vontade, quero descobrir, quero brincar de entender; mas a obra precisa me dar
esses caminhos, a obra precisa operar os códigos de linguagem que me permitam o
acesso às camadas mais profundas, a obra precisa me dar as pistas para o meu
trôpego caminho, não o mediador. Depois, o resultado disso se opera na minha
cabeça das formas mais diversas, não necessariamente como o artista imagina, e
muito menos como o mediador sugere. Digo, o quão complexa precisa ser uma peça
de teatro para que o espectador não tenha condições de acessá-la sem uma
mediação? Por quê? Para quê? Para quem?
Velhos caem do céu como canivetes tangencia esse tema, e circular pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura não deixa de ser uma oportunidade de fazer
reverberar essas perguntas, e provocar as respostas. Estamos só no início da
nossa jornada, e hoje partiremos para Primavera do Leste/MT, que receberá nossa
oficina, outro intercâmbio, mais três apresentações e seus respectivos debates.
Momentos do fórum permanente de reflexão que propomos para os nossos consortes
de jornada e para você que acompanha a experiência, e as elucubrações
provenientes desta. Qual será a próxima?
5 comentários:
"Quando vou ver uma peça que obriga uma mediação, seja ela qual for, me dá preguiça. Me sinto desprestigiado como espectador"...
"Quando vou ver uma peça que obriga uma mediação, seja ela qual for, me dá preguiça. Me sinto desprestigiado como espectador. Eu não preciso que ninguém me explique a obra. Eu quero errar à vontade, quero descobrir, quero brincar de entender; mas a obra precisa me dar esses caminhos, a obra precisa operar os códigos de linguagem que me permitam o acesso às camadas mais profundas, a obra precisa me dar as pistas para o meu trôpego caminho, não o mediador."
Perfeitamente isso! Belíssima reflexão, Marcelo.
Flexinha, você tocou num assunto interessante. Permita o meu ponto de vista:
Se existe alguma “função” para qualquer uma das artes cênicas, esta seria proporcionar uma EXPERIÊNCIA ESTÉTICA.
Ou seja, a obra deveria ser capaz de proporcionar essa experiência pessoal e intransferível.
Portanto, qualquer opção em colocar “goela abaixo” uma das mil possibilidades de experiências (pode ser reflexiva, transformadora, sensível, emotiva, racional, não importa...), seja pelo mediador ou pelo próprio criador da obra, considero essa ação como um - com o perdão da força da expressão - ESTUPRO ESTÉTICO, além de uma pretensa maneira de colocar na arte cênica aquilo que ela dispensa: “hierarquia de conhecimento”.
É bom saber que dialogamos, André e Rosa!
Você demora a aparecer, João, mas quando aparece é mais certeiro que um Flecha! (Risos) Venha mais! Saudades!
Postar um comentário