O que faremos? Sempre
acreditei que um dos principais objetivos do teatro fosse provocar o
espectador, exigir dele uma postura independente, dialética; convocá-lo a
saltar para instâncias tortuosas; convidá-lo a saborear um dilema; instigá-lo a
se posicionar sobre um balizamento retrógrado; apresentar-lhe um novo paradoxo;
tirá-lo da zona de conforto – essa zona tão protegida pela TV que defronta o
sofá da sala e se encarrega de adormecer os sentidos para a fatal noite de sono.
O discurso mais recente de
interlocução, de necessidade de comunicação, de partidas mais abertas com o
público, pode camuflar um destino de simplismos e nivelamentos que não
necessariamente argumentam uma narrativa mais efetiva para o teatro na sua
contemporaneidade. Imagino se não deveríamos ter cuidado ao colocar a
necessidade de conversação a qualquer preço.
Fazemos teatro. Não fazemos
televisão, dança, cinema, literatura, artes visuais, música. Fazemos teatro,
com a qualidade sígnica, mítica e metafórica que ele oferece para a relação necessariamente
provocativa que dele se espera, conforme tangenciei aqui. Outras linguagens não
podem intervir, aconselhar, ou preconizar uma forma melhor de diálogo entre o
espectador e o teatro, pois, esse diálogo difere em conceito, condimento e contexto
das dialéticas que se estabelecem (ou não) entre o espectador e as outras
linguagens artísticas, ou entre os diversos instrumentos de entretenimento
contemporâneo.
O que me preocupa é o vale
tudo na busca desse espectador, quando a obra deixa de ser autônoma, e passa a
ser refém de uma demanda quantitativa, com o argumento de não estar fazendo um
teatro para poucos. Vale tudo? Se a morte é fundamental para a narrativa em
questão, devemos transformá-la em um desmaio, pelo simples fato da ideia ser
mais simpática ao espectador? A novela já faz isso; o teatro pode mais.
Certa vez, conversando com
um amigo que não via há muito tempo, recuperou uma frase que, segundo ele, eu
tinha dito uma década atrás, e que só agora ele conseguira compreender efetivamente.
A frase versava sobre a relação entre teatro e público, e parece ser que dizia
que não devíamos abrir concessões. A frase não me surpreendeu, nem me foi estranha
a ideia de ser de minha autoria, pois sempre pensei assim. O diálogo não se
constrói com concessões. Uma tese precisa ser contestada por uma antítese, para
que dela surja a síntese desejada. A tese não precisa apenas abrir mão de si
pela necessidade de dialogar com o outro, se deste outro não vem a argumentação
necessária que provoque a reflexão sobre a tese em questão. O teatro não
precisa facilitar o discurso para aumentar a relação com o público. O dogma do
teatro depender do público é perigoso. Se em uma relação um depende mais do
outro, a autonomia desse um é insustentável. Antropologicamente falando, o
espectador depende do teatro tanto quanto o teatro depende do espectador, não
se iluda.
Sim. O espectador também
depende do teatro, mesmo aquele que nunca viu uma única peça sequer. Ele pode
não fazer a menor ideia do que o teatro seja, mas esse cidadão depende do
teatro, mesmo sem saber. Assim como o teatro depende dele. Igualmente.
Equilibradamente. Equitativamente. Então, para mim, o fato do teatro depender
do espectador nunca se apresentou como uma ameaça; nunca foi uma sentença que
me levasse a cogitar concessões; nunca se assentou como um fantasma que exigisse
uma resposta artística à altura das suas expectativas; essa sentença nunca me
oprimiu, pois, sempre soube que esse espectador dependia tanto do teatro quanto
eu dele. Uma relação só pode ser saudável se preservada a independência das
partes. É nisso que acredito e, por acreditar nisso, é sobre esse fundamento
que trabalho.
É notório que tudo o que
tenho falado nas postagens pregressas, e tudo o que venha a se falar nas do
porvir, estão relacionadas com a nossa nova montagem em curso, e que conversa
com um dos escritores mais emblemáticos da literatura mundial, Jorge Luís
Borges. Logo, as sentenças absolutas formuladas aqui são o blefe de um criador
submergido em dúvidas, inseguranças, desconfianças, agonias, revezes, agruras,
vacilações, perguntas.
O que faremos? Estamos
dispostos a simplificar o complexo? A enfeitar o feio? A adoçar o amargo? A camuflar as injustiças? A
mudar o rumo? A soprar o ardor? A acalmar a tempestade? A remediar a dor? Estamos
dispostos a facilitar a vida do espectador, e torná-la amena ao ponto de não
sentir diferença entre uma ida ao teatro e uma xícara de chá na frente da TV?
Eu não.
5 comentários:
Muito bom! Por isso teatralizemos!
" Logo, as sentenças absolutas formuladas aqui são o blefe de um criador submergido em dúvidas, inseguranças, desconfianças, agonias, revezes, agruras, vacilações, perguntas." Vivo essas mesmas angústias no momento. Seu texto,dessa semana, super me guia. Valeu.
Não arredamos uma virgula, um ponto nem uma reticência.
Feliz por continuar dialogando contigo nas minhas reflexões, querido Marquinhos! Saudades!
Não arreda, Pellé! Diálogo, sim, submissão, não.
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