domingo, 23 de outubro de 2016

Quando a internet consumiu o cérebro


Convenhamos, conteúdo? No que se refere a conhecimento, a rede mundial de computadores cumpre a função que as bibliotecas cumpriam antes do advento da internet: estavam lá, mas ninguém se destacava até elas para ler um livro. A facilidade de acesso a qualquer tipo de conhecimento não redunda na sua assimilação, muito pelo contrário, a garantia da acessibilidade muitas vezes amortiza o navegante, pelo simples fato de saber que o conteúdo estará lá, a qualquer hora, submisso e disponível como o livro na estante que nunca nos dignamos a abrir.

O universo que se mostra perante o internauta é tão emblemático quanto as primeiras cinquenta páginas do livro “Grande Sertão: Veredas”; se você não conseguir superá-las, não conhecerá a verdade. Da mesma forma, a maioria dos navegadores não ultrapassa o óbvio, e acaba num círculo vicioso de redes sociais, portais de notícias, jogos, músicas e vídeos engraçados. É um enredamento de frivolidades que subjuga nosso discernimento, nossa atenção, nossa objetividade, nossa intenção.

Com uma frequência assustadora, a opção online nos encaminha para a mais improvável polêmica da semana – tanto discussões pertinentes, de cunho sócio-político-cultural, quanto fastidiosas, como da santificação à satanização, em menos de vinte e quatro horas, do hipster da Polícia Federal –, antepondo-se ao acesso daquela informação importante e necessária que buscávamos no momento em que entramos na internet.

Me causa espanto nossa falta de inteligência ao explorar um dos instrumentos mais democráticos que o ser humano criou, e o quanto essa falta de inteligência transforma a vida virtual em uma espécie de zona morta, morada de zumbis, exercício de catatonia. Das horas que ocupamos nos desocupando na internet, não recebemos sequer minutos de uma boa pesquisa, de uma urgente significação, de uma prometida análise, daquela fonte de conhecimento que sempre desejamos aceder, mas que requer uma sequência de cliques tão intrincada que forja a justificativa necessária para cairmos na rede social mais acorde com o nosso humor.

Se você, cara leitora, desconfiado leitor, suspeita do meu argumento, façamos o cálculo. Calculemos o tempo demandado pelo combo citado acima (redes, portais, vídeos, jogos) e o tempo que dedicamos à maior fonte de conhecimento de que se tem notícia desde a Biblioteca de Alexandria. A conta será traumática, e correremos para a rede social mais polêmica para vomitar nosso descontentamento com a constatação.

Se o assunto é teatro, das experiências cênicas de Tadeusz Kantor à obra completa de Shakespeare, tudo está ali, pedindo uma atenção desesperada, porém, o dedo é rapidamente conduzido para o humorístico da moda. História do teatro, clássicos, teses, projetos cenográficos, cartografias, tudo ali. A um clique está o acesso aos espetáculos dos amigos, dos distantes, dos malditos, mesmo entendendo que a experiência teatral não é transponível. Contudo, através da pesquisa, podemos contextualizar, investigar, perceber, reconhecer, aprofundar. Estudar. Sim, por mais óbvio que pareça, é bom ressaltar que a internet pode ser uma inesgotável fonte de estudo.

O que tento nesta postagem, me divertindo com a pretensão, é entender qual foi a falha na criação deste instrumento chamado internet. Que tipo de fantasma binário entravou a lógica da rede, fazendo com que o usuário tenha dificuldade de penetrar além da primeira camada. Algo aconteceu. De alguma maneira a eletrônica substituiu a mecânica, e a nossa lógica física de procurar o que queremos foi substituída pela absorção da primeira coisa que aparecer; sendo que, na maioria dos casos, essa coisa está relacionada com os recursos financeiros que o interessado tenha para garantir a visibilidade da coisa em questão. É muita coisa.

Essa lógica nos tornou tolos, manipuláveis, consumistas, redundantes; filósofos de botequim. Descompassamos os ritos sociais, onde qualquer reunião se tornou um encontro entre telas, ou, diretamente, trocamos realidade por virtualidade; mas, principalmente, confundimos conhecimento com informação, e passamos a absorver tudo aquilo que se apresenta à nossa frente, curvando nossa fronte, sem chegar ao conhecimento que fingimos procurar. Quando uma leitura exige um pouco mais de paciência, atenção, complexidade, análise, chamamos de “textão”. Quando o link se abre, corremos o cursor para verificar a extensão da possível caixa de Pandora, que, por valoração do nosso precioso tempo, preferimos não abrir – como fez o leitor que não chegou a este ponto da postagem, e se livrou desta inútil reflexão que não abre caixa alguma.

Talvez esteja no equilíbrio a medida para evitar todos os tombos contemporâneos. Conseguir equilibrar-se entre tempo real e tempo virtual. Equilibrar-se entre informação e diversão, conhecimento e nugacidade. Entender que uma pesquisa vai muito além do Google, que rede social não é fonte, que pode haver ordem no caos das nuvens. Equilibrar é o verbo. Equilibrar-se é o que evita o tombo. Como rede, a teia deixada pela internet exige equilíbro. Como malabaristas do todo, precisamos estudar cada passo, equacionar cada movimento, sob pena de perdermos um tempo precioso que jamais poderemos recuperar. Claro que, apesar de falar na primeira pessoa do plural, sei que estou falando apenas de mim. Sorte a sua.

3 comentários:

Beth Néspoli disse...

Mais uma boa reflexão, Marcelo. Em setembro, em uma oficina de crítica em Cuiabá (uma experiência da qual gostei imensamente e cujos participantes eram todos artistas da cidade) eu comentei sobre você, seu espaço teatral tão importante, sobre o trabalho que vi. Quanto de bacana desconhecemos desse Brasil gigante, não é? Beijo e bom domingo.

Marcelo Flecha disse...

Poxa, Beth, que alegria! Imaginar que incrustados aqui conseguimos despertar a lembrança dos amigos sobre o nosso fazer nos faz seguir em frente, acreditando que o caminho e esse, seguir para resistir! Cuiabá é uma cidade muito querida da Pequena, "Pai & Filho"
e "Velhos..." já passaram por lá... Outra alegria é ter você por aqui! Obrigado pela atenção! Beijo!

Waldir disse...

Você dramaturgizou tudo. Está registrado para quem quiser ler pelas falas das suas personagens, e ainda vou além Aldous Huxley já anteviu o sistema de castas e que vai se definir pelos perfis de usuário. Teremos Alfas, Betas e Gamas. Em qual seremos enquadrados quando vier o caos vai depender de onde clicamos. Vide quando você tá no face, mas abre na outra aba uma pesquisa sobre os gols do domingo e quando volta pra aba face tem anúncio de venda de camisa do flamengo ou ou NETSHOES qualquer...