domingo, 13 de setembro de 2015

As amarras da liberdade


Um amigo, mais afeiçoado a modernices do que eu, ao término de uma das apresentações de Velhos caem do céu como canivetes, sentenciou: Que massa! Vocês fazem teatro mesmo, com personagens, cenários, texto, figurinos... O amigo não vai me censurar por tomá-lo como exemplo, aja vista que escrevo para passar o tempo e escasseio de atenções desmensuradas.

Enquanto se desenrolava o devir da conversação eu me perguntava: como assim? Mas o teatro não é isso, basicamente? Digo, isso não deveria ser a base, e não a exceção? Senti-me jurássico, no decorrer dos poucos minutos que prosseguiram enquanto outras adjetivações assombravam o teatro que fazemos.

Eu reconheço a pluralidade teatral, e penso que uma linguagem só se desenvolve a partir desse pluralismo, mas não vejo com bons olhos o olhar de quem nos vê com olhos saudosistas (o trocadilho é para você ficar estrábico), porque do teatro precisa sobrar para o espectador pouco mais do que uma ideia na cabeça.

O pensamento revelado pelo amigo encontrou eco recente em uma reunião de artistas para compreender as diretrizes de um outro dos tantos editais de cultura que minimamente propiciam o fazer artístico por todo o Brasil – sendo este mecanismo o que sobrou das promessas de políticas públicas culturais em que tanto acreditamos e continuamos esperando.

Nessa reunião senti-me igual. Sobre a égide da inovação, ineditismo, pluralismo, singularidade e afins, o poeta que escreve poesia, o cantor que canta, o grupo de teatro que faz teatro, o bailarino que dança, o ator que atua parecem verdadeiros dinossauros perdidos ou encaixotados em arcaicas e ultrapassadas linguagens artísticas. Por mais relevante que seja uma obra de arte, parece ser necessário que esteja apresentada em um invólucro contemporâneo, logo, não importa quão revolucionário se mostre o seu dizer/fazer, se não for apresentado de forma inusitada.

Claro que não me contive, e perguntei se nessas quase duas décadas de programa havia sido selecionado algum projeto que contemplasse simplesmente as atividades artísticas dos fósseis citados acima. A resposta foi curiosa: parecer ser que uma Cia. de dança que estava no fim, resolveu celebrar esse fim inscrevendo um projeto, uma espécie de extrema-unção da sua dança. Não preciso dizer que a inovação de uma Cia. que celebra seu fim foi contemplada.

O disparate para mim é celebrar o fim de uma Cia., quando a verdadeira inovação é conseguir manter no Brasil um coletivo artístico na contramão do mercado, do achincalhe das artes, do entorpecimento criativo. Cias, grupos e coletivos morrendo tem aos borbotões. Inédito é um grupo de teatro brasileiro conseguir chegar a trinta anos de história fazendo teatro. Insisto, é muito fácil inventar-se criativo, inovador, polêmico, como já falei aqui e aqui, o difícil é inovar organicamente, comprometer-se com as mudanças estruturais que devem acontecer no país para que a barbárie não se estabeleça.

Consigo ouvir a pergunta que está prestes a pular da sua boca: o edital não tem o direito de fazer esse recorte, e por consequência, não incluir aqueles que não se coadunam com esse formato? Teria, se o próprio não se vangloriasse da quebra de caixas, da não compartimentalização, do não enquadramento, da liberdade criadora, do não formato, da contemplação total. Se tudo pode, poderia também aquilo que não tenta reinventar a roda e apenas desliza sobre a original invenção que fez o mundo girar. Sob esse modelo, creio que sem perceber, acabara criando sua própria caixinha.

Ao caro leitor que enxerga no meu comentário um comprometimento da minha relação com a oferta de oportunidade promovida por qualquer que seja o instrumento (edital, lei de incentivo, patrocínio, fundos etc.), sugiro que não tema. Não cale sua voz só por medo a perder a boquinha. Onde houver recursos públicos, é nossa obrigação questionar, indagar, contestar. Assim o fiz com a Lei Rouanet, com políticas públicas estaduais, e o farei com quanto eu achar que minha opinião é oportuna, mesmo que não seja.

Se eu pretendo inscrever algum projeto? Claro. Mas estruturado no meu particular conceito de inovação, ineditismo e contemporaneidade, pois não é a arte que deve se adequar ao sistema, e sim o contrário... E pode me ignorar, afinal, eu sou uma ficção.
 
Marcelo Flecha

3 comentários:

luciana simoes disse...

O proprio espetáculo que vcs produzem é inovador, fazer arte é inovação...

aff

Fernando Yamamoto disse...

Essa é uma questão terrível, caro Flêtcha! Cada vez falta mais qualidade teatral no que se faz, e abre-se mais espaços para picaretagem, que faz com que os raros trabalhos "contemporâneos" de qualidade se percam em meio a esse mar de leviandades teatrais... Não é preciso saber falar um texto, não é preciso ter um corpo preparado, basta um conceito complicado que encha os olhos dos programadores, críticos e avaliadores de editais, e tá tudo certo...

Marcelo Flecha disse...

Que bom ouvir vozes como a de vocês, Luciana e Fernando. Assim não me sinto nem tão só, nem tão maluco nem tão equivocado!