Fotos de Ayrton Valle |
Crítica de Igor Nascimento
Convém-se que
a Tragédia é a derrota do Homem diante da vontade divina. Não se luta contra o
que foi preestabelecido pelos “Céus”.
Por mais cruel que o destino possa parecer, o Homem é regido por estas
convenções de ordem divina e/ou social e deve respeitá-las. O ato que vai de
encontro àquilo que lhe foi conferido pelos deuses ou/e pela sociedade
culminará em um terrível fim. Seu caráter transgressor, que parecia sua maior
qualidade, será o responsável por sua queda. Mesmo arrependido, continuará
caindo até se chocar contra um sólido fundo trágico...
Nós, do lado
de cá, sentindo terror e piedade, nos purgamos daquele defeito de caráter que
parecia tentador em um primeiro momento, pois deu ao Herói toda glória que
possuía; mas, depois, tornou-se indigesto, daí a purgação. Essa é a catarse,
grosseiramente resumida e efetivamente útil quando se trata de adaptar o
sujeito às convenções:
Em Velhos
Caem do Céu como Canivetes, da Pequena Companhia de Teatro, temos uma montagem que
vai de encontro a todo esse sistema coercitivo que é denunciado por Augusto
Boal em Teatro do Oprimido. A Tragédia é posta ao avesso. O que sim vemos é um
drama com ares trágicos, ou, uma “antitragédia”. Já explico...
O “Ser Alado”
(Jorge Choairy) desce na Terra e encontra o “Ser Humano” (Claúdio Marconcine).
Quando as luzes acendem, o cenário é um ambiente caótico, onde tudo parece
desconexo. A unidade desses objetos em desordem se dá na movimentação do Ser
Humano: sua rotina, aparentemente, é pôr tudo em ordem para, depois, tudo
desfazer. Aquele terreno é um produto de suas ações sob a natureza. Não temos
uma ligação com a ação-texto. Não se opta por um texto dito com nuances bem
definidas. Parece que tudo que se fala é amortizado por esta natureza
solidificada pelos elementos dispostos em cena e pelas ações-físicas que
fazem com que os personagens interajam com os objetos e entre si. Seus corpos
são anormais. O andar, a postura e a voz fogem do corpo cotidiano. O
contraponto é este: um corpo fora do padrão executando ações que revelam um
determinado padrão (determinado): o Extracotidiano Vs Cotidiano vivendo num
espaço mínimo. No primeiro encontro entre os dois personagens esse jogo logo se
revela: o estranhamento causado pela insólita visita não se dá pelo encanto, ou
pela admiração de ver um ser de asas. É, antes, um “que diabo é isso...”.
Ambos são
apresentados. Conhecem-se. Interpelam-se. Coabitam. Convivem. O Ser Alado tem
uma missão: fazer com que o Ser Humano acredite em algo para além daquele plano
terreno (questão que fica em aberto), mas, em suma, significa que ele quer
persuadir o homem a se mover, evoluir, a sair dali, daquele jogo repetitivo. O
Ser Humano, contudo, é imóvel. Ele se atém às necessidades da vida. Luta, mesmo
que de forma parcimoniosa, contra fome e contra a sede. Ao mesmo tempo, ele
cria engenhocas para passar o tempo, inventando outras necessidades - necessidades
fabricadas - como a de ficar tonto através de um pequeno aparelho feito com a
peça central de um ventilador de teto. O Ser Alado tenta se adaptar, construir
uma rotina dentro daquele plano, enquanto “convence”, inutilmente o Ser Humano
a se mover. Seu gesto, que antes se baseava na ação de mexer os ombros,
repelindo as asas, acaba ganhando os ares daquela rotina. Ele, inclusive, testa
a máquina de ficar tonto e se mostra curioso em relação às engenhocas
produzidas pelo Outro, como o Manifesto à Eletricidade. Há uma mudança em seu
corpo e a dramaturgia do ator ganha um significado na trama e conta algo
também.
Os dois
planos: o que está dentro (a realidade) e o que está fora (o além) se
confrontam através dos corpos dos dois atores encerrados naquele universo
retratado, cenograficamente, com materiais retirados do lixo.
Ao final, o
Ser Alado desiste. Voltaria para o lugar de onde veio, mas eis que vem o golpe
da outra dramaturgia, aquela, do velho dramaturgo, aqui, Marcelo Flecha: o Ser
Humano mata o Ser Alado com uma cacetada! O elemento textual decisivo se revela
através de uma didascalia, provavelmente: Ser Humano defere uma boa e segura
bordoada no Ser Alado, matando-o (sic). A grande catástrofe é um ato físico.
Novamente o corpo e o movimento. Aqui, finalmente, o orgânico, o indeterminado,
o transcendente se junta ao material, ao concreto, ao plano terreno prático,
rotineiro, que fará do Ser Alado a refeição, a galinha do Almoço - o resto é
para Janta.
Onde está a
tragédia? Ou a “antitragédia”, como disse antes? Como um Sistema Coercitivo, como alude
Augusto Boal, a catarse visa purgar o homem de algum defeito que não é adequado
para o Sistema. Normalmente, representado por um oráculo ou pelos deuses, esse
Sistema se apresenta com ares superiores, com as pompas do Além e do Supremo.
Em Velhos Caem do Céu como Canivetes, essa lógica se inverte. Lá, a realidade
pré-estabelecida é a miséria, é a fome, é a vida do homem presa a uma rotina
que gira em torno do material, do imediato, do mecânico. Não há um “fora”, um “macrocosmo”, aquilo é o
tudo. Nesse novo sistema entra o Ser Alado pretendendo a mudança. As asas
significam a possibilidade do livre deslocamento. Não há revolução sem
movimento. E é aqui que o Ser Alado sofre o grande golpe trágico, não dado
pelos deuses ou pelo Estado, mas por um simples mortal e cidadão comum. O fim:
a morte. As luzes: vermelhas. O que era para ser purgação se torna refluxo.
Volta para as tripas, ou seja, para o chão do corpo, para o jogo maçante das
necessidades diárias.
O Destino é,
nesse caso, a sobrevivência. Na tragédia, tudo volta a ser como antes através
do terror e da piedade que sentimos pelo herói - basta não seguirmos o seu
exemplo e não achar precioso o seu defeito (Hamartia), afora isso, tudo está
perfeito. No quadro dramático “antitrágico” de Velhos Caem do Chão como
Canivetes tudo volta a ser como era antes, ou seja: terror e piedade; pois,
apesar da refeição garantida, outros dias de míngua e desumanidade hão de
continuar. Sentimos terror da miséria e piedade daqueles que vivem nessas
situações, tais sentimentos estão em nosso cotidiano - basta assistir aos
jornais e ver que embrulho isso dá. O que há de ser “purgado” aqui é a nossa
ingênua crença de que isso, um dia, pode ser mudado, ou seja, que um dia a
pobreza ganhará asas e sairá voando de nossa realidade.
“É pensando
que a porta é alta que batemos nossa cabeça na parede”
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