domingo, 1 de dezembro de 2013

Não, querido, não se voa colocando aspas no verbo "voar"

Fotos de Ayrton Valle
Crítica de Igor Nascimento
 
Convém-se que a Tragédia é a derrota do Homem diante da vontade divina. Não se luta contra o que foi preestabelecido pelos “Céus”.  Por mais cruel que o destino possa parecer, o Homem é regido por estas convenções de ordem divina e/ou social e deve respeitá-las. O ato que vai de encontro àquilo que lhe foi conferido pelos deuses ou/e pela sociedade culminará em um terrível fim. Seu caráter transgressor, que parecia sua maior qualidade, será o responsável por sua queda. Mesmo arrependido, continuará caindo até se chocar contra um sólido fundo trágico...
 
Nós, do lado de cá, sentindo terror e piedade, nos purgamos daquele defeito de caráter que parecia tentador em um primeiro momento, pois deu ao Herói toda glória que possuía; mas, depois, tornou-se indigesto, daí a purgação. Essa é a catarse, grosseiramente resumida e efetivamente útil quando se trata de adaptar o sujeito às convenções:
 
 “Aristóteles formulou um poderosíssimo sistema purgatório, cuja finalidade é eliminar tudo que não seja comumente aceito, legalmente aceito, inclusive a revolução, antes que aconteça. O seu Sistema aparece dissimulado na TV, no cine, nos circos e nos teatros. Mas a sua essência não se modifica. Trata-se de frear o indivíduo, de adaptá-lo ao que pré-existe.” (BOAL, 1931).
 
Em Velhos Caem do Céu como Canivetes, da Pequena Companhia de Teatro, temos uma montagem que vai de encontro a todo esse sistema coercitivo que é denunciado por Augusto Boal em Teatro do Oprimido. A Tragédia é posta ao avesso. O que sim vemos é um drama com ares trágicos, ou, uma “antitragédia”. Já explico...


O “Ser Alado” (Jorge Choairy) desce na Terra e encontra o “Ser Humano” (Claúdio Marconcine). Quando as luzes acendem, o cenário é um ambiente caótico, onde tudo parece desconexo. A unidade desses objetos em desordem se dá na movimentação do Ser Humano: sua rotina, aparentemente, é pôr tudo em ordem para, depois, tudo desfazer. Aquele terreno é um produto de suas ações sob a natureza. Não temos uma ligação com a ação-texto. Não se opta por um texto dito com nuances bem definidas. Parece que tudo que se fala é amortizado por esta natureza solidificada pelos elementos dispostos em cena e pelas ações-físicas que fazem com que os personagens interajam com os objetos e entre si. Seus corpos são anormais. O andar, a postura e a voz fogem do corpo cotidiano. O contraponto é este: um corpo fora do padrão executando ações que revelam um determinado padrão (determinado): o Extracotidiano Vs Cotidiano vivendo num espaço mínimo. No primeiro encontro entre os dois personagens esse jogo logo se revela: o estranhamento causado pela insólita visita não se dá pelo encanto, ou pela admiração de ver um ser de asas. É, antes, um “que diabo é isso...”.
 
Ambos são apresentados. Conhecem-se. Interpelam-se. Coabitam. Convivem. O Ser Alado tem uma missão: fazer com que o Ser Humano acredite em algo para além daquele plano terreno (questão que fica em aberto), mas, em suma, significa que ele quer persuadir o homem a se mover, evoluir, a sair dali, daquele jogo repetitivo. O Ser Humano, contudo, é imóvel. Ele se atém às necessidades da vida. Luta, mesmo que de forma parcimoniosa, contra fome e contra a sede. Ao mesmo tempo, ele cria engenhocas para passar o tempo, inventando outras necessidades - necessidades fabricadas - como a de ficar tonto através de um pequeno aparelho feito com a peça central de um ventilador de teto. O Ser Alado tenta se adaptar, construir uma rotina dentro daquele plano, enquanto “convence”, inutilmente o Ser Humano a se mover. Seu gesto, que antes se baseava na ação de mexer os ombros, repelindo as asas, acaba ganhando os ares daquela rotina. Ele, inclusive, testa a máquina de ficar tonto e se mostra curioso em relação às engenhocas produzidas pelo Outro, como o Manifesto à Eletricidade. Há uma mudança em seu corpo e a dramaturgia do ator ganha um significado na trama e conta algo também. 
 
Os dois planos: o que está dentro (a realidade) e o que está fora (o além) se confrontam através dos corpos dos dois atores encerrados naquele universo retratado, cenograficamente, com materiais retirados do lixo.
 
Ao final, o Ser Alado desiste. Voltaria para o lugar de onde veio, mas eis que vem o golpe da outra dramaturgia, aquela, do velho dramaturgo, aqui, Marcelo Flecha: o Ser Humano mata o Ser Alado com uma cacetada! O elemento textual decisivo se revela através de uma didascalia, provavelmente: Ser Humano defere uma boa e segura bordoada no Ser Alado, matando-o (sic). A grande catástrofe é um ato físico. Novamente o corpo e o movimento. Aqui, finalmente, o orgânico, o indeterminado, o transcendente se junta ao material, ao concreto, ao plano terreno prático, rotineiro, que fará do Ser Alado a refeição, a galinha do Almoço - o resto é para Janta.


Onde está a tragédia? Ou a “antitragédia”, como disse antes?  Como um Sistema Coercitivo, como alude Augusto Boal, a catarse visa purgar o homem de algum defeito que não é adequado para o Sistema. Normalmente, representado por um oráculo ou pelos deuses, esse Sistema se apresenta com ares superiores, com as pompas do Além e do Supremo. Em Velhos Caem do Céu como Canivetes, essa lógica se inverte. Lá, a realidade pré-estabelecida é a miséria, é a fome, é a vida do homem presa a uma rotina que gira em torno do material, do imediato, do mecânico.  Não há um “fora”, um “macrocosmo”, aquilo é o tudo. Nesse novo sistema entra o Ser Alado pretendendo a mudança. As asas significam a possibilidade do livre deslocamento. Não há revolução sem movimento. E é aqui que o Ser Alado sofre o grande golpe trágico, não dado pelos deuses ou pelo Estado, mas por um simples mortal e cidadão comum. O fim: a morte. As luzes: vermelhas. O que era para ser purgação se torna refluxo. Volta para as tripas, ou seja, para o chão do corpo, para o jogo maçante das necessidades diárias.
 
O Destino é, nesse caso, a sobrevivência. Na tragédia, tudo volta a ser como antes através do terror e da piedade que sentimos pelo herói - basta não seguirmos o seu exemplo e não achar precioso o seu defeito (Hamartia), afora isso, tudo está perfeito. No quadro dramático “antitrágico” de Velhos Caem do Chão como Canivetes tudo volta a ser como era antes, ou seja: terror e piedade; pois, apesar da refeição garantida, outros dias de míngua e desumanidade hão de continuar. Sentimos terror da miséria e piedade daqueles que vivem nessas situações, tais sentimentos estão em nosso cotidiano - basta assistir aos jornais e ver que embrulho isso dá. O que há de ser “purgado” aqui é a nossa ingênua crença de que isso, um dia, pode ser mudado, ou seja, que um dia a pobreza ganhará asas e sairá voando de nossa realidade.
 
“É pensando que a porta é alta que batemos nossa cabeça na parede”

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