Foto de Ayrton Valle |
Por Sandro Fortes
A
peça "Velhos caem do céu como canivetes", de Marcelo Flecha, que vi
recentemente encenada por Jorge Choairy e Cláudio Marconcine, esses enormes
atores no palco da Pequena Companhia de Teatro, toca em tantos temas atuais que
se torna uma metáfora singular, e incontornável, a respeito de nós mesmos e de
nossa época.
A
peça se inspira, com ampla liberdade, num conto de Gabriel Garcia Marquez, e
mostra basicamente a dicotomia entre duas personagens antagônicas num cenário
arruinado que me lembrou a terra devastada do famoso poema de T. S. Eliot, pano
de fundo escolhido para sugerir a tenebrosa miséria humana que será exibida em
cena, e tanto a peça quanto aquele poema mostram-nos um mundo em que a cultura
humanista da nossa civilização cedeu lugar ao vazio existencial da barbárie
contemporânea na qual sobrevivemos sabe Deus como. Um detalhe curioso sobre
este cenário de cacarecos e de restos empilhados é que quase tudo nele
sutilmente sugere o formato de asas.
Pois
asas são aquilo que um dos personagens deseja recuperar. Trata-se de uma figura
patética que desabou na terra (como um canivete?) e boa parte da peça
desenrola-se sobre a dúvida que a sua figura desperta (é um anjo? um pássaro?
um super-homem? Um pobre-diabo?) ao dialogar com outro personagem patético,
igualmente decaído, um homem que se afastou da chamada civilização, um
ex-artista, que se tornou um esfarrapado faminto remexendo no lixo e que se
alimenta de caranguejos ou do que mais aparecer na sua frente. Os
questionamentos existenciais das personagens são endereçados também aos
distintos membros da plateia e a miséria ali mostrada é, também ela, legítima
cosa nostra.
O
tema principal é o da queda, em todos os sentidos. Da degradação espiritual,
econômica, social, pessoal, civilizatória. Tanto o homem quanto o
"anjo" ali expostos são seres que chegaram ao fundo do poço. Anjos
caídos, na tradição gnóstica, ou na literatura de um John Milton (Paraíso
Perdido), ou num filme como Asas do Desejo, de Wim Wenders, não são mais anjos
coisa nenhuma, ou são demônios ou agora meros homens.
E
homens, o que somos? Seríamos nós anjos caídos também, vivendo na terra uma
condição infernal de degradação material e espiritual, como uma cena de
sonambulismo do personagem "humano" sugere? Tais questionamentos parecem
ser o propósito das várias hipóteses levantadas e descartadas com muita ironia
no jogo travado entre as duas personagens.
Anjos
aparecem para nos salvar ou, como escreveu Rilke, "todo anjo é
terrível"? Mas que tipo de salvação é possível num mundo dominado pela
fome, pela miséria, pela brutalidade, que perdeu toda conexão com o sagrado?
Sobreviver em meio à penúria total, junto com a mulher e os filhos, que
receberam o legado de nossa miséria? Salvação aqui é escapar da morte de fome.
Neste
sentido, a peça de Marcelo Flecha se situa quase como uma alegoria da
"morte em vida" nordestina (ou antes, da vida e morte severina),
apesar de ser uma obra que aspira ao universal, o autor toca com as duas mãos
no regional: sua peça é cara e clara demais como metáfora da penúria própria de
quem vive em terras devastadas pela miséria, uma gente como a maranhense, que
há tempos amarga as esperanças de melhorias (políticas, econômicas, sociais),
mas que ainda sonha, tem fé, aspira à salvação, o que a torna presa fácil do
oportunismo político messiânico de alguns, enquanto é assolada e acossada pela
precariedade e pela fome de viver.
"Velhos
Caem do Céu Como Canivetes" é incisiva e fere fundo ao mostrar a
existência como uma queda, um rebaixamento do humano. Como reagiremos, se é que
reagiremos, é a grande questão que deixa no ar.
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