domingo, 13 de outubro de 2013

Anjos destroçados entre sonhos de salvação

Foto de Ayrton Valle

Por Sandro Fortes
 
A peça "Velhos caem do céu como canivetes", de Marcelo Flecha, que vi recentemente encenada por Jorge Choairy e Cláudio Marconcine, esses enormes atores no palco da Pequena Companhia de Teatro, toca em tantos temas atuais que se torna uma metáfora singular, e incontornável, a respeito de nós mesmos e de nossa época.
A peça se inspira, com ampla liberdade, num conto de Gabriel Garcia Marquez, e mostra basicamente a dicotomia entre duas personagens antagônicas num cenário arruinado que me lembrou a terra devastada do famoso poema de T. S. Eliot, pano de fundo escolhido para sugerir a tenebrosa miséria humana que será exibida em cena, e tanto a peça quanto aquele poema mostram-nos um mundo em que a cultura humanista da nossa civilização cedeu lugar ao vazio existencial da barbárie contemporânea na qual sobrevivemos sabe Deus como. Um detalhe curioso sobre este cenário de cacarecos e de restos empilhados é que quase tudo nele sutilmente sugere o formato de asas.
Pois asas são aquilo que um dos personagens deseja recuperar. Trata-se de uma figura patética que desabou na terra (como um canivete?) e boa parte da peça desenrola-se sobre a dúvida que a sua figura desperta (é um anjo? um pássaro? um super-homem? Um pobre-diabo?) ao dialogar com outro personagem patético, igualmente decaído, um homem que se afastou da chamada civilização, um ex-artista, que se tornou um esfarrapado faminto remexendo no lixo e que se alimenta de caranguejos ou do que mais aparecer na sua frente. Os questionamentos existenciais das personagens são endereçados também aos distintos membros da plateia e a miséria ali mostrada é, também ela, legítima cosa nostra.
O tema principal é o da queda, em todos os sentidos. Da degradação espiritual, econômica, social, pessoal, civilizatória. Tanto o homem quanto o "anjo" ali expostos são seres que chegaram ao fundo do poço. Anjos caídos, na tradição gnóstica, ou na literatura de um John Milton (Paraíso Perdido), ou num filme como Asas do Desejo, de Wim Wenders, não são mais anjos coisa nenhuma, ou são demônios ou agora meros homens.
E homens, o que somos? Seríamos nós anjos caídos também, vivendo na terra uma condição infernal de degradação material e espiritual, como uma cena de sonambulismo do personagem "humano" sugere? Tais questionamentos parecem ser o propósito das várias hipóteses levantadas e descartadas com muita ironia no jogo travado entre as duas personagens.
Anjos aparecem para nos salvar ou, como escreveu Rilke, "todo anjo é terrível"? Mas que tipo de salvação é possível num mundo dominado pela fome, pela miséria, pela brutalidade, que perdeu toda conexão com o sagrado? Sobreviver em meio à penúria total, junto com a mulher e os filhos, que receberam o legado de nossa miséria? Salvação aqui é escapar da morte de fome.
Neste sentido, a peça de Marcelo Flecha se situa quase como uma alegoria da "morte em vida" nordestina (ou antes, da vida e morte severina), apesar de ser uma obra que aspira ao universal, o autor toca com as duas mãos no regional: sua peça é cara e clara demais como metáfora da penúria própria de quem vive em terras devastadas pela miséria, uma gente como a maranhense, que há tempos amarga as esperanças de melhorias (políticas, econômicas, sociais), mas que ainda sonha, tem fé, aspira à salvação, o que a torna presa fácil do oportunismo político messiânico de alguns, enquanto é assolada e acossada pela precariedade e pela fome de viver.
"Velhos Caem do Céu Como Canivetes" é incisiva e fere fundo ao mostrar a existência como uma queda, um rebaixamento do humano. Como reagiremos, se é que reagiremos, é a grande questão que deixa no ar.

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